Todos os dias e, quase sempre no mesmo horário, Tania
colocava a água para ferver. Sabia que o filho adorava tomar café quando
chegava da universidade. Distração boa depois das obrigações diurnas.
Recém-ingresso em economia, ainda não se habituara por completo a nova rotina. Diariamente,
ele acordava às 09h30min da manhã. Daí, as ações eram metricamente calculadas a
fim de evitar atrasos quanto à condução da tarde que cotidianamente tomava para
chegar ao curso. Orgulhosa, Tania acordava antes do filho e preparava-lhe o
desjejum.
“a benção, mãe”.
“Deus te acompanhe meu filho”
E, assim, despediam-se momentaneamente.
Depois de abençoá-lo, Tania fazia os afazeres domésticos mais
pesados que não eram poucos. Embora fosse
modesta a casa onde morava com o único filho, o trabalho era árduo. Seis
cômodos apenas: sala, dois quartos, cozinha, banheiro e uma pequena despensa na
qual acomodava a velha máquina de lavar. Mesmo assim, Tania exauria suas
energias com o trato do lar. Não trabalhava fora. Vivia da pensão do Estado,
deixado pelo marido, um policial militar, morto após salvar uma moça de uma
tentativa de assalto. Não resistiu aos
três tiros que levou quando voltava para casa após o seu turno. Dias difíceis.
Tania começou a lavar roupa para madames, fazer faxinas em casa de família mais
abastadas. Vira-se como podia. Havia uma cria para alimentar. Tempos difíceis
àqueles que só melhoraram quando saiu o benefício social que lhe garantia a tão
almejada pensão do governo.
Verdade que a
matriarca cochilava após o almoço, despertando aproximadamente às 15h00min. Uma
última garimpada na casa, um pano úmido da mesa a fim de expulsar as moscas que
teimavam em sobrevoá-la eram as ações quase que automáticas. Após passar o tão desejado café que o filho
tanto gostava, ela sentava no velho sofá revestido de uma manta igualmente
gasta e, esperava-o. Olhava para o
relógio que há tempos fora fincado na parede da cozinha. Pedro, o filho,
chamava-o de Big Bem, com M mesmo. Uma nítida referência ao famoso relógio inglês. O cuidado
excessivo para com o filho veio justamente de tê-lo como família. Desde morte
do pai, transformou-se como a unívoca figura masculina naquela casa e companhia
inseparável da mãe. Apoiavam-no um ao outro.
Quando de algum atraso do filho, Tania já se desesperava,
saindo constantemente, dando voltas na calçada numa tentativa vã de diminuir a
aflição. Seu penar só lhe cessava os tremores das pernas quando o via dobrando
à direita da Rua André Breton. Nesses
momentos, muitas das vezes, não se continha, indo, assim, ao seu encontro. Já
dispostos na redonda mesa de quatro lugares, solviam o saboroso café juntamente
com alguns biscoitos amanteigados que eram cuidadosamente colocados dentro de
um bote de vidro.
Assim, em estado de comunhão e amizade, permaneciam.
Conversavam sobre tudo. Minutos sagrados para ambos. Desfrutavam ao máximo.
Momento tão esperado do dia. Certa tarde, quando ele falava animadamente de um
seminário bem sucedido na disciplina de história econômica geral, interrompeu
aquela habitual confraternização para que sua mãe atendesse Sonia, sua
tia. Vez por outra, Sonia visitava-os.
Encontros que se intensificaram nos últimos meses. Quase que toda tarde, nos
últimos três ou quatro meses. Eram irmãs mais chegadas desde infância. E,
melhores amigas também. Foi justamente Sonia que acobertava o namoro da irmã
mais nova quando era terminantemente proibido o encontro com algum moço que se
engraçasse pelas filhas de seu João. Pai linha dura delas.
“mulher mal falada, não casa”
Resmungava seu João quando de algum sermão em ambas.
Rememoravam essas e outras danações do tempo de meninas. Pedro se divertia as gargalhadas quando de um dia no qual sua mãe e sua tia levaram
uma tremenda surra por terem indo a uma festa no racho numa cidadezinha
circunvizinha. Tardes boas. Ficavam os
três degustando do amargo café em volto as lembranças de ambas. Assim,
passava-se o tempo.
Sonia, naquela tarde, após lavar a louça, beijou o rosto da
irmã, dando-lhe os calmantes prontamente prescritos. Ao sair, ainda lhe deixou
a promessa de volta dali a dois ou três dias. E, olhando o quarto vazio, voltou
para irmã e, disse-lhe:
“eu te amo”
E, foi-se ao encontro de seu palio fire. Chegando à sua casa,
olhou para a estante de sua sala, e, beijando um porta retrato azul, pensou na
possibilidade de passar alguns dias na casa da irmã. Ideia boa, mas longe de
materialização devido tanto ao trabalho na confecção quanto aos cuidados do lar,
com marido e com três filhos. Limitar-se-ia ao café de todas as tardes e,
rejeitando a agora longínqua ideia, devolveu o porta-retrato do sobrinho
falecido a estande e pôs a preparar a janta da família.
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